
UNDER_SPOTLIGHT: FRAGOSO
"Fragoso em destaque no Under_spotlight: uma conversa profunda sobre os seus 20 anos de carreira, a arte do digging, colaborações marcantes e a visão futurista que continua a influenciar a música eletrónica em Portugal."
UNDER_SPOTLIGHT


Na primeira edição do Under_spotlight, recebemos Fragoso, uma das figuras mais autênticas e visionárias da cena eletrónica nacional. Parte integrante da produtora Faina e com passagens por labels de peso como Nervous e Tamango, Fragoso tem construído uma carreira marcada pela dedicação à descoberta sonora e pela busca incessante da próxima “pérola” musical.
O seu percurso é guiado por uma filosofia única: criar momentos especiais, onde a raridade e a energia se fundem na pista de dança. Reconhecido por nomes de referência como Arapu, Priku, Laurent Garnier e Yaya, Fragoso continua a deixar a sua marca dentro e fora de Portugal.
Depois de celebrar 20 anos de carreira com a compilação Diggers Paradise e uma colaboração com o lendário DJ Vibe na icónica editora Nervous Records, Fragoso segue em 2026 com novos projetos que prometem elevar ainda mais o seu estatuto de referência na cultura eletrónica.
Na Undermag, queremos conhecer melhor o artista por trás dos discos, o digger incansável e o visionário que transforma cada set numa viagem única.
• Fragoso, começando pelo início — como nasceu a tua paixão pela música eletrónica e o que te levou a seguir este caminho como DJ e produtor?
Tudo começou por volta de 2000. Tinha uma banda de garagem com uns amigos e tivemos a brilhante ideia de, além de eu fazer as vozes, ficar também responsável pelo scratch e pelo turntablism. Foi aí que começou o meu contacto com os gira-discos. Na altura já gostava de música eletrónica, mas ainda não tinha uma predileção clara por House ou Techno. Inevitavelmente, no processo de comprar o primeiro “prato”, acabei por visitar algumas lojas de discos — e as primeiras em que entrei eram especializadas em música eletrónica. Foi instantâneo. O primeiro disco que comprei foi Everybody de Brancaccio & Aisher, com remistura de King Britt, editado pela Bedrock — curiosamente, ainda hoje é um dos meus favoritos. Quanto à produção, era eu quem gravava o que fazíamos enquanto banda, e como a abordagem era bastante experimental, acabei por desenvolver alguma aptidão na área. Na altura era tudo muito baseado em hardware, o que me deu uma base técnica sólida e uma curiosidade enorme pelo lado da sonoplastia.
• A Faina tem-se destacado como uma plataforma sólida de cultura eletrónica nacional. Que papel desempenha para ti dentro dessa estrutura e o que distingue o vosso movimento?
A Faina é uma representação da sinergia entre artistas com backgrounds diferentes. No meu caso, ter tido mentores como o António Cunha — no período em que trabalhei na Kaos como A&R — mudou completamente a minha perspetiva sobre a “cena”. Do início até à criação da Faina, em 2016, o processo foi longo. Voltar para Aveiro e voltar a cruzar-me com o Luís — que já era meu amigo desde a minha primeira residência como DJ — conhecer o Pedro pouco tempo antes da Faina, e ainda o Carlos Lázaro e o Miguel Oliveira, acabou por criar uma mistura de mindsets que se traduz muito no que a Faina é hoje. Todos temos uma ligação fortíssima à House Music, mas com influências diferentes. No meu caso, as maiores vêm da cena de Nova Iorque e de Lisboa nos early days. Tanto eu como o Pedro e o Luís temos um background como residentes, e isso foi importante para definir, numa fase inicial, a forma como estruturámos os line-ups e escolhemos os convidados. Hoje estou mais dedicado à editora, como A&R, enquanto o Pedro e o Luís tratam da parte dos eventos. Naturalmente há uma interação constante entre todos — tanto nos eventos como na label — mas cada um tem a sua área bem definida. Na minha opinião, o que distingue a Faina é a atitude em relação à sua identidade. Não há concessões. Sabemos o que fazemos e o que queremos fazer. Não temos uma postura de seguir tendências, mas sim de as definir. Claro que as tendências acabam por influenciar, mas de forma limitada — acreditamos que a autenticidade é, acima de tudo, o valor mais importante.
• Falas muitas vezes da tua “obsessão” pela descoberta sonora. Como é o teu processo de diggin’? Passas mais tempo a explorar vinil, promos digitais ou mergulhas mesmo nas profundezas da internet?
Hoje em dia uso essencialmente o Discogs, Bandcamp, Deejay e Decks. Tenho uma regra: ignoro os nomes dos artistas, salvo raras exceções. Faço isto porque me permite não priorizar ninguém à partida e evitar perder a oportunidade de descobrir algo de alguém “desconhecido”. Quando há uma label de que gosto, ouço tudo — do primeiro ao último release. O Discogs é fantástico para isso. Andar a redescobrir catálogos como o da Touché ou da Hooj, vinte anos depois, é incrível. Ouves temas que na altura te passaram completamente ao lado ou que não achaste interessantes — e agora soam de forma completamente diferente. Acaba por ser um exercício refrescante, porque no processo percebes o teu próprio amadurecimento. Recebo muitas promos, por vezes mais do que consigo ouvir. Em alguns dos casos acabo até por fazer remasters de temas antigos para tocar, mais ajustados ao padrão actual. Ultimamente tenho adorado o Bandcamp. Quando estou em viagem — especialmente no carro — deixo correr o que lá vai aparecendo, e assim vou descobrindo pérolas quase todos os dias.
• Tiveste o reconhecimento de artistas como Arapu, Priku, Laurent Garnier e Yaya — o que representa para ti esse feedback internacional?
Representa um sinal de que algo está, aparentemente, a ser bem feito — ainda que, durante muitos anos, eu não tivesse essa perceção, pelo menos no contexto nacional. Acho que qualquer artista neste meio acaba por esbarrar naquele ponto de transição entre não ter qualquer apoio e, de repente, começar a tê-lo. E isso faz uma diferença tremenda. Quando chegas a um determinado ponto da tua carreira, começas a perceber melhor as dinâmicas da scene. Uma delas é veres miúdos com um talento enorme, com humildade, com postura — mas que ainda não têm a fanbase necessária para lhes dar o devido suporte motivacional. Os primeiros anos — que podem ser muitos — são a verdadeira prova de fogo. Ou tens esse “edge” interno para persistir, ou simplesmente desistes. E, infelizmente, em Portugal isso é ainda mais difícil, porque muitos artistas estabelecidos, por conveniência com a sua posição, preferem assobiar para o lado quando veem alguém excepcional. Isto deve-se a uma mentalidade de que o poder dentro da scene é finito. O meu mindset é diferente: acredito que podemos empoderar outras pessoas no meio sem que isso nos impacte negativamente. Naturalmente, isso depende única e exclusivamente da capacidade que cada um de nós tem para acompanhar o progresso. Esse é um dos motivos pelos quais estou continuamente à procura de novos artistas e de lhes dar o suporte que penso que merecem. Não quero que percamos talento por causa de uma cultura insalubre dentro do próprio meio. Embora seja uma perspetiva pessoal, acabo por usar a Faina e a Diggers Paradise como alavancas para dar visibilidade a esses talentos. É uma questão de perspetiva.
• A colaboração com o DJ Vibe e o lançamento pela Nervous Records foram marcos importantes. Como surgiu essa ligação e o que aprendeste com essa experiência?
O contacto com o DJ Vibe surgiu através do Bessone, há alguns anos atrás, quando eu era A&R da Home/Made. O Diego (Bessone) tinha estado em contacto com o Tó (DJ Vibe) devido à promo que fazíamos da label, e foi assim que nos convidou para uma primeira colaboração, de onde resultou a “Playground”, que foi o release 100 da label. Desde aí que criámos uma amizade e temos colaborado com frequência. No caso da Nervous, foi com a “Don’t Stop”. Existe um “dito popular” que diz algo deste género: “Nunca conheças os teus heróis”. Por norma, a referência a isso deve-se ao risco de poderes sofrer uma desilusão. Não foi de todo o caso. O DJ Vibe sempre foi a minha referência número 1. Tendo eu crescido musicalmente na época que cresci, para quem se lembra… era deus no céu e o Almighty na terra. Não só foi e continua a ser um privilégio colaborar com ele, mas também, enquanto pessoa analítica que sou, ver que ele é de facto bem além da curva. Para alguém que está nisto há 50 anos, tem a curiosidade de um miúdo de 15. E dou por mim a falar com ele de tecnicalidades com as quais falo com muito poucas pessoas na indústria. O que aprendi com esta experiência? A manter-me sempre curioso, aberto à aprendizagem, aberto a ouvir — seja quem for, um rookie de 15 anos ou um expert de 70. Há sempre algo novo. E o Tó continua a ser altamente relevante pela sua adaptabilidade e capacidade de nunca parar de aprender e de se ultrapassar a si mesmo.
• O teu projeto Diggers Paradise celebrou 20 anos de carreira. Se olhares para trás, quais foram os momentos que mais te marcaram neste percurso?
Na verdade, o Diggers Paradise deveria ter sido lançado em 2020, para assinalar os meus 20 anos no mundo da música. Devido à pandemia — e com alguma infelicidade da minha parte — decidi adiar para 2023, que acabou por marcar também os meus 20 anos como DJ profissional (comecei em 2003 como residente). Houve muitos momentos marcantes, mas um dos que ainda hoje recordo com alguma nostalgia foi a minha residência no Insomnia Afterhours, em Colónia, por volta de 2008/2009 — um after-hours intenso, com sets longos das 5h às 13h. Mental. Lembro-me também de um after Faina no antigo Maravilhas, em Aveiro, na primeira sala — casa a arder e ainda nem 20 minutos tinham passado do início do set. Outro momento foi o Faina Cais, o primeiro evento que fizemos no espaço criativo. Entrei a seguir ao Lee Burton. Não sei bem o que aconteceu nesse dia — ainda estávamos no período pós-pandemia, com algumas restrições — mas a energia foi surreal. E claro, o NOS Alive, com o Bessone, no evento DJ Vibe pres. A Paradise Called Portugal. Pela ligação ao passado, e pelo simbolismo do momento, foi algo muito especial. Em muitos ficou o sentimento — e é isso que, no fim, acaba por ficar mais vivo do que qualquer outro detalhe.
• Como descreves a tua estética sonora atual? Que influências e referências moldam o som do Fragoso de hoje?
Hoje em dia, o meu som é uma fusão de muitas influências, mas acima de tudo carrega uma forte herança do som português do final dos anos 90 — aquele puro groove com beats pesados, baixos expressivos, a roçar o electro, acordes quentes e dramáticos, e vocais que bebem muito do disco e do soul dos 70s. A influência do funk original é enorme, mas ao mesmo tempo há temas em que sigo uma direção mais escura e introspectiva, onde se sente o peso do trip-hop inglês e até algum experimentalismo à Aphex Twin. As influências estão todas lá, mas a linha condutora — a identidade central — é e será sempre esse ADN português: beats fortes, mas sempre deep.
• Sendo um artista de espírito explorador, como vês o futuro da música eletrónica — tanto em Portugal como no panorama global?
Acho que ainda seremos muito surpreendidos pelo futuro. Vivemos um momento na música que, de certa forma, é análogo aos anos 80 e 90 — mas em ritmo acelerado. Tudo acontece rápido, tudo se repete. Já não existe uma “monocultura” na eletrónica como havia nos 90s; hoje são várias microculturas a coexistir, e isso cria alguns constrangimentos em termos de eficiência e organização, especialmente no contexto dos eventos. Essa fragmentação vem, em grande parte, dos círculos de influência que as redes sociais geraram. Mas acredito que o futuro da comunicação — para quem está atento — não passará pelas telas nem pelas redes sociais como as conhecemos. Será algo mais integrado com a realidade. E com isso, e com a mudança inevitável do modelo de publicidade, teremos um sistema híbrido entre o antigo e o atual. Se será melhor? Não sei. Logo veremos. O modelo de streaming, na minha opinião, é um fracasso anunciado. Fornece música a custo quase zero, o que afasta artistas independentes e pequenas editoras. Além disso, a música gerada por IA está a inundar as plataformas, tornando o cenário ainda mais caótico. Por outro lado, temos exemplos como o Bandcamp — sem publicidade, sem custo de streaming, fácil de usar e que realmente recompensa o artista. É curioso pensar que um músico independente pode ganhar num mês no Bandcamp o que demoraria uma década a receber no Spotify. Em Portugal, o problema é estrutural há mais de duas décadas. Importamos muitos artistas, mas exportamos poucos. E não é por falta de capital — é por conflito de interesses. Os centros de influência, em vez de potenciar o talento nacional, acabam por limitá-lo. E enquanto isso não mudar, continuaremos a desperdiçar uma geração inteira de produtores e dj's excepcionais.
• Que importância tem a pista de dança para ti enquanto artista? É um espaço de celebração, de catarse ou de comunicação com o público?
Vejo a pista de dança como um espaço de catarse, introspeção e comunicação com o público. Não quero com isto dizer que desvalorizo a celebração — mas acredito que o mundo já está cheio de DJs e eventos que priorizam apenas esse lado. A minha proposta é, muitas vezes, outra. Há sempre um momento para celebrar, aquele instante em que se cria a ponte de confiança com o público. Mas, no fundo, a minha natureza é trazê-los para o meu mundo. Tenho uma visão quase espiritual da música, da sessão. Não me interessa vê-la como um mero produto de consumo. Gosto, no final, de olhar à volta e ver um sorriso sereno na cara das pessoas — aquele tipo de expressão que vem de quem sentiu algo verdadeiro. Quem já passou por isso sabe exatamente do que falo.
• Por fim, podes levantar um pouco o véu sobre o que vem aí? Que novidades ou colaborações podemos esperar de Fragoso nos próximos meses?
Para já, não quero adiantar muito… mas deixo algumas pistas: DJ Vibe, Ray Mono, Limo Trax (Limousine Dream), Faina Music, Diggers Paradise e Timebender.
O resto — fica no plano da imaginação.
A Undermag agradece ao Fragoso pela generosidade, pela visão e pela profundidade que trouxe a esta edição do Under_spotlight. O seu percurso, dedicação ao digging e compromisso em elevar a cultura eletrónica inspiram não só artistas, mas toda a comunidade. Obrigado por partilhares connosco a tua energia, a tua história e a tua forma única de ver a música.
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