Dixon: Duas Décadas de Innervisions e a Reinvenção da Magia na Pista

Há artistas que fazem parte da história. E há artistas que moldam a história enquanto a vivem. Dixon — nome maior da electrónica contemporânea — é, sem qualquer dúvida, um desses poucos.

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11/19/20255 min read

No vídeo recentemente publicado pela Resident Advisor, Stefan Berkhahn abre portas à intimidade criativa e ao pensamento crítico que há duas décadas sustenta a força motriz da Innervisions. O resultado é um retrato raro: não apenas do DJ, mas do curador, do contador de histórias e do pensador político que se recusa a ver a música de dança como uso descartável.

O momento é simbólico. São vinte anos de um dos selos mais influentes da música electrónica moderna — comemorados com maratonas em Berghain e Fabric — mas também vinte anos de mutação constante. A entrevista expõe tudo isso: a inquietação, os ciclos criativos, o peso da responsabilidade e a urgência de renovar estruturas num panorama que mudou mais rápido do que a noite conseguiu acompanhar.

Este artigo mergulha no coração dessa conversa. No que ela revela sobre Dixon. E no que ela revela sobre o futuro da cultura clubbing.

Um aniversário que se tornou espelho da própria cena

A celebração dos 20 anos de Innervisions não foi apenas uma festa — foi um marco emocional e histórico. Dixon descreve ainda com brilho nos olhos as horas sem fim em Berghain e Fabric: uma mistura de nostalgia, adrenalina e quase incredulidade perante a dimensão do público.

No Berghain, a fila atravessava quarteirões. No Fabric, o evento estendeu-se por 26 horas. Não era apenas o culto de Dixon enquanto DJ. Era a prova de que Innervisions, mesmo depois de duas décadas, continua a falar a gerações que não viveram o seu início. Porquê? Porque, segundo Dixon, o segredo sempre foi simples — mas exigente: “Nunca quisemos ser um museu. Nunca quisemos guardar uma fórmula.”

Innervisions mudou constantemente — sem perder a alma. E essa capacidade de se reinventar, mesmo dentro do espectro da house music, manteve o selo vivo, relevante e capaz de dialogar com um público jovem, crítico e emocional.

Contar histórias: a competência que separa DJs de artistas

Uma das frases mais fortes da entrevista é também uma das mais verdadeiras:

“Fazer um DJ set não é ciência aeroespacial. Mas saber contar grandes histórias… isso nem todos conseguem.”

A perspectiva é cristalina: Dixon acredita que um DJ não é um selector de faixas. É um narrador. Alguém que reorganiza emoções, que pega num tema potencialmente banal ou “demasiado” — demasiado melódico, demasiado duro, demasiado estranho — e o transforma num momento que as pessoas querem guardar para sempre.

Esta visão explica também a sua longevidade num mercado onde a hiperexposição, a velocidade e a volatilidade tornaram quase impossível manter relevância por mais de cinco ou seis anos.

Dixon continua lá. Porque a proposta artística continua a ser profunda. E porque a música, para ele, continua a ser um ritual — não uma mera ferramenta de reprodução.

A crise criativa cíclica: um artista que admite vulnerabilidade

Um dos momentos mais humanos da entrevista é quando ele descreve o sistema de altos e baixos criativos. Todos os anos, sem exceção, Dixon enfrenta um período de exaustão, saturação sonora e perda de clareza estética — normalmente no fim do verão. O motivo? Simples: excesso de viagens, e um mercado onde a música relevante raramente sai num timing que respeite a vida real dos DJs.

A forma como ele lida com isso, porém, é singular: a cada ano, faz uma pausa de três semanas na Índia para um retiro Ayurvédico de Panchakarma.

Não é exotismo. É sobrevivência. Ele desliga tudo: Sem música. Sem promo. Sem telefone. É um reset sensorial. E só assim — desligando completamente do ruído — consegue voltar a ouvir, verdadeiramente, a música.

Quando a tecnologia muda a dança: Transmoderna e a visão além do DJ

Durante os últimos anos, Dixon tornou-se também um dos artistas mais inovadores na relação entre clubbing, artes digitais e imersão sensorial — fruto do projecto multidisciplinar Transmoderna.

O mais importante? Transmoderna não é sobre substituir o DJ por tecnologia. É sobre tirar o foco do DJ para devolver a noite ao seu centro original: a pista.

Na visão dele, a cultura da dança tornou-se demasiado centrada na figura do performer.
Os ecrãs atrás do DJ amplificam um culto visual que empobrece a experiência colectiva.

O objectivo de Transmoderna foi precisamente o oposto:

  • Criar instalações visuais à volta da pista, não atrás do artista

  • Retirar o DJ do centro de atenção

  • Reposicionar o público como protagonista do ritual nocturno

É irónico — e trágico — que muitos tenham interpretado o mesmo conceito ao contrário, transformando clubes em palcos de “Instagram shows”.

Como ele diz:
“Inspirámos muitas pessoas… infelizmente na direção errada.”

A partir de 2026, Dixon e a equipa preparam uma nova fase do projeto: não eventos, mas instalações imersivas exposicionais, afastando-se do formato clubbing tradicional.

A dança é política — e sempre foi

Um dos trechos mais fortes da conversa é quando o tema se volta para política, silêncio e responsabilidade.

Dixon é claro: A música de dança nasceu como movimento político.

Dos espaços queer negros e latinos de Chicago e Nova Iorque às ocupações que uniram Berlim Este e Oeste após a queda do muro, a pista sempre foi um lugar de voz, resistência e comunidade. Quando hoje muitos artistas escolhem o silêncio, especialmente em crises humanitárias como Gaza, Dixon não suaviza:

“Se tiramos o lado político da dança, sobra só barulho.”

É uma crítica que toca directamente no coração da indústria moderna: um ecossistema onde influenciadores substituem activistas e onde o medo de perder gigs pesa mais do que a urgência de tomar posição.

A grande questão: é possível manter valores num mundo de superclubs?

Dixon move-se entre o underground e o mainstream. Toca no Pacha, mas mantém raízes profundas na cultura rave de Berlim. A sua resposta à contradição é honesta: Sim, é possível — mas cada vez mais difícil.

O problema não está nos espaços gigantes. Está na falta de comunidade, no desaparecimento de clubes que funcionavam como instituições, e na transformação das cidades em plataformas de eventos rotativos, onde identidade e pertença raramente sobrevivem.

A solução, para ele, passa por três linhas:

  1. Eventos com curadoria real, não só line-ups.

  2. Rituais colectivos e sentido de comunidade.

  3. Recolocar valores — não métricas — no centro da cultura.

Innervisions 2.0: a passagem de testemunho

Talvez a revelação mais simbólica da entrevista seja esta: Innervisions vai mudar novamente. E Dixon está pronto para a transição. Jimmy Jules e Trikk — colaboradores próximos — passam a integrar a estrutura criativa e decisória do selo. É uma aposta na renovação geracional, mas também no futuro. Dixon recusa ser guardião solitário de um legado. Ele repete várias vezes: A pior coisa seria transformar Innervisions num museu.

Por isso passa a tocha. Por isso abre portas. Por isso insiste em deixar o selo respirar sem depender exclusivamente da sua estética. É esse gesto — generoso, consciente e raro — que garante que a história continuará a ser escrita nos próximos 20 anos.

O artista, o mentor, o humano

O final da entrevista é quase emocional. Quando perguntado sobre o conselho que daria ao seu “eu” mais jovem, Dixon diz: “As pessoas têm dificuldade em aceitar que mudam. Eu gostava de ter aprendido isso mais cedo.”

É, talvez, o insight mais valioso da conversa: a capacidade de abandonar fórmulas, deixar ir expectativas e aceitar que a evolução não é traição — é sobrevivência. Dixon é um artista que se permite mudar. E é exatamente isso que o mantém relevante, humano e profundamente conectado à cultura.

Notas Finais

O vídeo revela muito mais do que a celebração de um aniversário — é uma aula sobre longevidade artística, integridade criativa e responsabilidade cultural. Dixon continua a ser um dos narradores mais importantes da música electrónica moderna. Não por estatuto. Não por fama. Mas porque insiste em ver a pista como um espaço de comunidade, política e transformação. Num mundo onde a noite corre o risco de ser reduzida a espetáculo e consumo, a visão dele é um lembrete poderoso:

A dança é memória. É história. É resistência. E é, acima de tudo, um lugar onde nos voltamos a encontrar — uns com os outros, e connosco mesmos.